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Carro 2816

Posted by Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ Sheila Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ on 24.11.08

Estive em Joinville no final de semana, e me conectei com minha família ao invés da internet (tá, confesso, tive crise de abstinência :-). Ficamos todos reunidos no "ninho" originário, como nos velhos tempos. Neste aspecto, minha viagem foi revitalizante. Entretanto, em contraste com todo esse calor humano familiar, lá fora a chuva caía castigando severamente a cidade. As manchetes dos jornais alardeavam que todo o estado de Santa Catarina estava a mercê do tempo.
A volta para Florianópolis estava marcada para as 16:51 hs de domingo, sendo que o ônibus vinha de Curitiba. Fui informada que muito provavelmente chegaria em Floripa com pelo menos 2 horas de atraso.
Apesar das vozes contrárias dizendo que eu deveria viajar somente no dia seguinte, resolvi seguir minha intuição. Embarquei no carro 2816 às 18:00 hs.
Logo depois do posto policial de Barra Velha, que fica apenas 45 km da entrada de Joinville, a água invadiu a pista, cobrindo uma pequena ponte sob a qual "deveria" estar passando apenas um tímido riacho, e não aquela enxurrada toda. O motorista, de forma responsável, parou para avaliar a possibilidade de seguir em frente. Infelizmente, as águas avançaram mais rapidamente do que qualquer pensamento ou tomada de decisão. Em poucos minutos seguir em frente já não era mais uma escolha. Atrás do ônibus uma grande fila se formara. No meio da pista, um muro de concreto. Não havia para onde correr. Estávamos presos no KM 93 da BR 101, na pista sentido norte-sul.

As informações eram desencontradas. A equipe de resgate, que ficou o tempo todo margeando a área alagada, alertava que outras partes da estrada estavam comprometidas, e que chegar a Floripa seria impossível. Diante deste quadro fatídico, o melhor remédio parecia ser voltar para Joinville. Para isso, vários ônibus que seguiam na pista sul-norte foram parados, e passageiros afoitos correndo na chuva com mala a tiracolo foram recolhidos.
A simples possibilidade de poder voltar para Joinville, longe de todo aquele pavor, era tentadora demais. Como muitos outros passageiros, não resisti. O primeiro ônibus que parou eu perdi, porque me enrolei para arrumar as coisas e pular para o outro lado da pista. O segundo ônibus eu alcancei, na chuva, juntamente com outros passageiros. Entretanto, pasmem, o motorista disse que seguiria direto para Curitiba, se recusando a parar em Joinville para não "atrasar" a viagem.
Enquanto isso, a noite caia, a água subia cada vez mais, e timidamente a chuva anunciava que iria voltar para ficar. Retornei para o carro 2816, e minha cabeça estava a mil. Procurava decidir se ficava ou tentava voltar.... me repreendia mentalmente por ter insistido em viajar naquele dia... na verdade, todo esse burburinho visava esconder o medo que estava começando a dar sinal de vida. Quem passou por situação parecida sabe que ficamos completamente vulneráveis frente as intempéries da natureza.
Resolvi voltar para a minha poltrona, e descansar um pouco. Tinha reclamado a semana toda que não conseguia tempo para terminar de ler meu livro ("A Cabana"). Bom, naquele momento, tempo eu tinha de sobra. Retornei à leitura de onde tinha parado. E, incrível como o universo sempre arranja uma forma de nos confortar. Se estivermos atentos aos sinais, sempre saberemos que caminho seguir.
O capítulo falava exatamente num dos males que assola a humanidade, qual seja, a mania de sempre classificarmos as coisas como "boas" ou "ruins". E, é claro, esse nosso pré-julgamento é limitado a minguada visão que temos dos acontecimentos. Um momento em específico pode ser catastrófico. Entretanto, quando analisado dentro do contexto global, torna-se uma benção. Em determinado momento, o autor me brindou com a frase que acalmaria de vez meu coração: "Não estou pedindo que acredite em nada, mas vou lhe dizer que você vai achar este dia muito mais fácil se simplesmente aceitá-lo como é, em vez de tentar encaixá-lo em suas idéias preconcebidas".

Naquele momento, agradeci a Deus pelo conforto e me entreguei. Guardei a mala, me ajeitei na poltrona e confiei... apenas confiei.
Horas depois seguimos viagem, com o ônibus enfrentando bravamente a água que invadia a pista. Mas, não fomos muito longe, novo trecho da estrada estava interrompida pelo avanço das águas. Bom, só restou ao motorista uma opção: fazer o retorno. Lá estávamos novamente na estrada, sentido sul-norte (Floripa-Joinville). Paramos num posto, onde então nos reunimos com mais 02 ou 03 ônibus. Os motoristas concluíram que para conseguir seguir em frente deveriam, antes, retroceder. Assim, voltamos até Itajuba, seguindo por dentro até Navegantes, onde então, retornamos para a BR 101.
Apesar do cansaço de todos, a paisagem desoladora que se desenrolava ao nosso redor, nos impedia de pregar os olhos. Parecia cena de um filme triste: o comboio seguia absolutamente só, desviando de destroços, carros abandonados, profundo breu. Não havia outra alma viva trafegando numa das rodovias mais movimentadas do país. A pista sentido norte-sul simplesmente desapareceu sob as águas. Seguíamos pela contramão, e a correnteza fazia com que o ônibus balançasse. Parecia que estávamos dentro de um rio, e não numa estrada federal. Em alguns locais, era possível enxergar somente o telhado das casas e a copa de algumas árvores. Era impossível conter as lágrimas...
Depois de algumas paradas e desvios, empacamos novamente em Tijucas, onde ficamos pelo menos umas 04 horas esperando a água baixar. Enquanto isso, a chuva continuava açoitando o ônibus.
Chegamos em Florianópolis as 06:00 hs da manhã. Exatas 12 horas de viagem. Quando desembarcamos, encontramos a rodoviária completamente vazia, e fomos informados por alguns funcionários que permaneceram de plantão, que foram suspensas as entradas e saídas da rodoviária de Floripa, até quinta-feira próxima. Ninguém entra... ninguém sai. Além disso, 3 trechos da BR 101, entre Joinville e Florianópolis, haviam sido totalmente interditados, nos 2 sentidos.
Ou seja, apesar de tudo conspirar contra... de, a primeira vista, ter pego aquele ônibus no meio do caos parecer a pior escolha possível... de todos dizerem que jamais chegaríamos ao nosso destino... o carro 2816 foi um dos únicos que conseguiu desembarcar na rodoviária de Florianópolis.
Sim... eu estava no lugar certo, no momento exato. E, para isso, eu só precisei... confiar!

Lembrete para mim: comprar um celular com bateria de longa duração. Naquele caos todo, as engenhocas eletrônicas do meu celular (câmera embutida, agenda com figuras animadas, musiquinhas high-tech) não me serviram para nada. Eu só precisava que a bateria durasse... só isso!

PS: O cansaço me impede de raciocinar direito. As imagens de destruição que vi na viagem não saem da minha cabeça. Os apelos dos desabrigados encontram eco no meu coração. E a chuva continua firme. Por favor Deus... que possamos entender os Seus desígnios com a maior brevidade possível :-(

4 Comments


Oii,
Que bom que chegou bem em casa!!! Acompanhei as notícias que vinham da aí e infelizmente a cada entrada da repórter nos jornais era pra anunciar mais tragédia, mais famílias desabrigadas! Nunca ouvi falar de tanto desmoronamento e rodovias interditadas como o que aconteceu aí em SC neste findi!!
Infelizmente, a gente sabe que nós de certa forma somos um pouco culpados por toda essa tragédia, porque tudo isso se deve ao aquecimento global que anda rondando o nosso país com estes fenomenos tropicais. Temos que nos conscientizar de que presevar as florestas e as águas vai ser cada vez mais importante para a nossa sobrevivência no futuro!
Fica nosso pensamento positivo para que tudo volte ao normal e que o nosso governo faça sua parte e ajude ao máximo esse estado tão lindo que é Santa Catarina.
Obrigada pela visita ao meu blog. Hoje postei um texto da Martha que saiu na ZH deste domingo, quando puder dá uma passadinha lá. Tô gostando da idéia de ter um blog!
Bjus e fica com Deus.
Janini


Que aventura hein! Que bom que vc conseguiu chegar em casa!
Que tristeza! Agora só nos resta orar e enviar pensamentos positivos para os necessitados.
Um beijo e boa semana!


Puxa, amiga!

Só li agora este seu post.

Não tinha noção do que você tinha passado! :-(

Graças a Deus tudo acabou bem!

Um abraço solidário,

Lu.


Sheilinha,
Que alívio deve ter sentido quando finalmente chegou ao seu destino.E durante toda a leitura de seu post,vivi aquele momento de certa forma com vc e pude sentir o que seus olhos tristemente foram testemunha.Então as notícias que chegam aqui ainda são mais brandas do que pensava...e não posso deixar de parabenizá-la pela forma envolvente com a qual expressa suas emoções e sentimentos.Adoraria ler um livro seu!Beijo

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