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Amanhã...

Posted by Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ Sheila Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ on 3.3.09

Acordou naquele sábado cheia de intenções. Abriu os olhos e espreguiçou-se vagarosamente na cama com lençóis de linho florido. Calçou os chinelos macios, evitou o espelho e seguiu para a cozinha. Abriu a geladeira e seus olhos pousaram no pedaço generoso de torta feita com uma espécie de suspiro com o famoso chocolate francês Valrhona, contendo ainda pedaços de nozes e castanhas fartamente acomodados na camada de mousse que finalizava esse doce pecado. Comprara a iguaria na noite anterior, pensando em saboreá-la na companhia de um delicioso café da tarde e um bom livro, degustados na varanda de seu apartamento recém adquirido. Não tinha a menor graça comer tal delikatessen na correria do café da manhã, preparado sem qualquer ritual. Torcendo o nariz diante de tal blasfêmia, apanhou a garrafa de leite semi-desnatado, tomou um gole no próprio gargalo e mastigou três bolachas água e sal.

Enquanto engolia sem muito empenho, instintivamente seus olhos foram atraídos para a garrafa do "Château Lafite Rothschild 2000" que ganhara no natal passado, e ocupava lugar de destaque na adega que instalara na cozinha. Seus instintos mais primitivos imploravam para saborear ao menos um gole daquela preciosidade curtida em barricas de carvalho francês, qualificada pelos especialistas como néctar dos deuses com notas de frutas vermelhas frescas. Mas, havia imaginado como acompanhamento um jantar a dois, luz de velas aromáticas, Marisa Monte cantando baixinho, salmão grelhado ao molho de maracujá, ladeado por uma salada imaculadamente verde, batatas cozidas e arroz branco. Quem sabe até ousaria fazer seu famoso musseline de alho-poró. Era verdade que tinha todos os ingredientes a mão. Faltava era a companhia masculina que se encaixasse perfeitamente neste cenário elaborado. Balançou a cabeça de forma a afastar os devaneios que estavam consumindo preciosos minutos de seu tempo, e retomou o foco.

Seguiu para o quarto, abriu a porta do armário, e, como sempre, seus olhos foram seduzidos pelo cabide bege forrado com seda persa. Ele segurava cuidadosamente o vestido de honra de seu guarda-roupa. Sempre perdia o fôlego quando olhava aquela peça amarela esvoaçante. Comprara o traje numa boutique famosa, em uma de suas viagens a trabalho. Perdera a conta dos locais que já havia imaginado incendiar com essa roupa. Mas, como de praxe, ainda não encontrara o ambiente perfeito para harmonizar com o figurino. Não iria colocar justo esse vestido numa festa qualquer. Amanhã é um novo dia, costumava dizer. Irritada com as interrupções mentais, pegou a calça jeans desbotada velha de guerra, uma camiseta básica branca e foi escolher o sapato. A caixa prateada Jimmy Choo reluzia no canto direito de seu closet. Ganhara como prêmio há três anos atrás, por destacar-se como a mais arrojada e promissora profissional da agência onde trabalhava há mais de uma década. Era o tipo de sapato que conversava diretamente com o ego feminino. Era capaz de transformar qualquer gata borralheira numa Carrie Bradshaw. Haveria de selecionar um evento digno para estrear essa arma da sedução. Quem sabe, pensou, no tão sonhado jantar a dois. Achou graça do pensamento e mecanicamente pegou o tênis branco encardido e confortável que clamava pela aposentaria. Foi atrás do brinco de madeira que comprou na feirinha hippie montada em frente a igreja, e que se revelara seu maior curinga. Antes, porém, deu uma olhada no conjunto delicado de berloque e brincos de ouro branco 18k e diamantes que ganhara de sua mãe em uma data especial qualquer. Sempre que os tocava, sentia-se envolta numa aura de proteção. Talvez por isso, considerava-os mais do que jóias: eram um amuleto. Até pensou em colocá-los, como aliás, sempre pensava, mas, para ir ao supermercado? Não tinha o menor cabimento, pensou, franzindo a testa. Passou para o cômodo seguinte e pegou a mochila marrom, não sem passar os olhos pela bolsa de couro Dior que adquirira por impulso no mês passado, depois de folhear uma revista de moda qualquer, enquanto aguardava sua consulta de rotina no dentista. Pior do que isto! Comprara a página inteira, que incluía uma echarpe de cashmere e seda e chapéu de palha. Anotou mentalmente que teria que dar o jeito de estrear amanhã a bolsa maravilhosa que lhe custara parte substancial do salário do mês, bem como os acessórios.

Titubeou antes de pegar a chave do carro. Passou a mão no telefone, discou os três primeiros números de um telefone mais que conhecido, mas desistiu bruscamente. Sua mãe teria que dar o braço a torcer desta vez. Já estavam nesta guerra silenciosa há quase quatro meses. Mas as palavras proferidas por sua genitora no calor da discussão ainda estavam quentes no seu coração. Até pensara em jogar a toalha e convidá-la para passear, mas, quer saber? Quem sabe amanhã eu esteja mais compreensiva, ponderou.

Passou a mão na mochila e saiu calmamente rumo ao supermercado. Ao passar pela beira-mar sentiu um impulso quase incontrolável de parar o carro e caminhar um pouco, sentindo a brisa e o calor morno do sol. Estava um dia lindo, com direito a céu azul, mar acarpetado e gaivotas se exibindo em rasantes magníficos. Era o típico dia que convidava ao deleite. Chegou a pisar no freio, mas desistiu. Amanhã, jurou, vou me dar essa caminhada de presente.
Estava tão envolvida com seus pensamentos e planos futuros, que não percebeu a agitação que se desenrolava do lado de fora do seu carro. Quando a caminhonete vermelha desgovernada invadiu sua pista e atingiu a porta do motorista, prensando seu automóvel contra o poste, não teve tempo de pensar. Ouviu seu próprio grito, sentiu os cacos de vidro ferirem sua pele, e tudo se fechou em profunda confusão. Viu sua vida se desenrolar em câmera lenta, como num filme amarelado e rasurado pelo tempo. Não sabe ao certo quanto tempo ficou cercada de metal por todos os lados. Na verdade, sequer tinha certeza de estar viva. Ouvia vozes, estalos, marteladas, serras elétricas a pleno vapor, sons que não faziam parte do seu cotidiano. De repente, abriram seu carro como se fosse uma lata de atum. E ela enfim saiu daquele inóspito túmulo de ferro ardiloso a que havia sido reduzido seu veículo.

Os policiais, paramédicos e curiosos a olhavam como olhariam para uma assombração. Não podia culpá-los.
A julgar pelo estado de seu carro, rebaixado a um amontoado de lata retorcida, era quase impossível acreditar que alguém poderia ter sobrevivido. Mas ela sobreviveu. Fisicamente intacta, fora parcos arranhões. Emocionalmente ainda estava presa nas ferragens, tentando entender o que acabara de acontecer. Alguém saiu da multidão que se aglomerara para acompanhar a cena fatídica e a abraçou de forma terna, sussurrando em seus ouvidos: "filha, é um milagre, você nasceu novamente". Ela estava confusa demais, anestesiada com o impacto dos acontecimentos, incapaz de responder a gentileza. Mas as palavras daquela estranha sem rosto ecoaram em sua mente e abriram portas em sua alma. Portas que há muito tempo estavam emperradas.
Resolveu como podia a burocracia com o seguro, guincho e outras faces pragmáticas do acidente. Ainda zonza, pegou um táxi e foi para casa.

Abriu a porta do apartamento vagarosamente, e adentrou seu lar como se fosse a primeira vez. Ligou o som da sala e foi direto para o quarto. Rompeu o lacre do kit de loções para banho "Love Spell"
da Victoria's Secret, que prometia ser uma profusa e deliciosa combinação da flor de cereja, muguet, maçã vermelha, pêssego da Georgia com toque de tamarindo. Enquanto Marisa Monte entoava "Preciso Me Encontrar", tomou um banho demorado, deixando a água reavivar cada fibra de seu ser. Enxugou-se delicadamente e deslizou o vestido amarelo no corpo. Calçou sua sandália Jimmy Choo e finalizou o visual com seu talismã. Foi para a cozinha, não sem antes fitar-se demoradamente na frente do espelho. Abriu a geladeira, rasgou o plástico de proteção das impecáveis cadeiras com estrutura de málaca e trançado de juta e sentou. Queria, ou melhor, precisava sentir a rusticidade do tecido roçando na sua pele. Despejou o Château na sua taça mais cara. Quando sentiu a explosão de sabores que o primeiro gole causou em sua boca, deixou que as lágrimas escorressem livremente pela sua face, dando um toque salgado às notas de madeira. Abriu a embalagem da delikatessen e aqueceu cada célula do seu corpo com o gosto exótico da torta de chocolate. Quando terminou de degustar o último pedaço, deslizou o dedo pelo prato, sentindo a textura areada da cobertura, e presenteou seus lábios com o restinho do sabor. Queria desfrutar na prática, cada gota de todos os prazeres que até então sempre estiveram ao alcance de suas mãos só na teoria.

Ainda embalada por aquele momento único de amor próprio, pegou o telefone e ousou discar todos os números. Sua mãe talvez não tenha compreendido o seu tom de voz, o seu pedido de perdão desengonçado ou mesmo as palavras que pareciam jorrar diretamente de seu coração. Palavras de amor que represara em seu íntimo desde a mais tenra idade e que, enfim, encontraram solo fértil no âmago daquela que lhe dera a vida. Choraram juntas, sem o menor pudor. Deixaram verter com toda a intensidade o sentimento que as unia, mas que esbarrava no orgulho forte de suas personalidades turronas. Fora o momento mais íntimo que desfrutaram ao longo de suas existências. O primeiro de muitos, pensou emocionada. Marcaram de jantar juntas. Desligou sentindo uma leveza que a fazia flutuar através de emoções até então desconhecidas. Olhou para o sol espetacular que ainda teimava em brilhar no horizonte e saiu.

Ninguém entendeu quando ela adentrou para caminhar na pista da beira-mar envolvida em brilho da cabeça aos pés e vestida com um glamour digno de festa VIP. Ela não se importava. Não agora. Nunca mais. Hoje era tudo que ela tinha. Afinal, o amanhã poderia se revelar um dia cheio de promessas irrealizadas.

E assim seguiu caminhando, a passos lentos mais firmes, sentindo o acariciar do vento na face e enchendo o ar daquela manhã ensolarada com seu perfume de maçã vermelha e pêssego. Estava tão satisfeita consigo que devolvia aos olhares reprovadores um sorriso cuja sinceridade ainda lhe era estranha.
Descobriu, enfim, que esse era o momento mais especial da sua vida. Passou a nutrir sincera afeição por si e, comovida, constatou que estava na melhor companhia que alguém poderia ter. E tudo isso porque sentiu o hálito do destino sussurrar no ouvido de sua alma. Sentiu na pele o poder do quase. Precisou quase morrer para começar a viver.

2 Comments


Sheila,

Amei o seu texto. Fazemos tantos projetos, planos e nos esquecemos que o mais importante é viver e aproveitar a vida agora.

Beijos,


E é sempre assim. Só se começa a viver, quando sente que pode perder aquilo que achava não lhe servir de nada... A VIDA.

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