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Lembranças...

Posted by Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ Sheila Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ on 30.7.10


Sabia que as palavras continuavam a jorrar dos lábios da sua melhor amiga, mas, a partir de certo momento, seus ouvidos se fecharam. Inventou uma desculpa esfarrapada demais para o seu padrão boa moça, e desligou lentamente o telefone, numa débil tentativa de cortar a conexão com a realidade.

Já presenciara vários de seus amigos se separarem e reconstruirem a vida com outra pessoa. Assim, no momento em que seu relacionamento de doze anos virara cinza, sabia de antemão que teria que aprender a viver em um mundo onde seu homem "
ex" estaria encontrando calor em braços que não eram os seus. Só permitia que essa divagação tomasse forma no consultório de sua psicóloga. Lá se sentia segura o bastante para extravasar sua dor confusão.

A separação não a tornou uma pessoa amarga, muito pelo contrário. Vivia rodeada de amigos e seu riso espontâneo era contagiante. Mas, era obrigada a confessar, amizade era a única coisa que conseguia oferecer. Qualquer tentativa de ultrapassar esse limite era repelido com firmeza. Continuava uma romântica incorrigível, mas exercitava essa fraqueza qualidade através de uma fome voraz por filmes. Mas, só aqueles onde o final feliz era garantido. Na verdade, sequer imaginava que rumo daria à sua existência. Somente uma certeza a acompanhava nos últimos tempos: ainda não estava pronta!

Nunca havia casado de véu e grinalda como as modelos das incontáveis revistas que mantinha escondidas em casa. Nem adentrado na igreja segurando um buquê de rosas brancas como costumava ensaiar desde a mais tenra idade. Também nunca sentiu o incômodo delicioso de uma aliança apertando enlaçando seu dedo anelar. Não havia fotos apaixonadas espalhadas pela casa, cartões escritos no ápice da paixão ou filhos. Se apaixonara por um homem extremamente prático, avesso a amarras e convenções, e em nome deste amor abrira mão de grande parte de seu lado poético. Apesar de não ter deixado vestígios palpáveis no apartamento que então dividiam, seu romance estava gravado a ferro e fogo em sua memória. Nunca se arrependera das concessões que fizera para manter a união.

Até aquele momento...

Quando caiu em si já estava na estrada. Apesar de todos os seus alarmes soarem a pleno vapor, precisava confrontar a realidade antes que a fantasia lhe consumisse. Conhecia o local com a palma da mão e a medida que o carro ganhava velocidade, mais e mais imagens pululavam em sua mente. O sítio de seus sogros estava ainda mais belo do que se lembrava. Entrou por uma passagem secundária, e se posicionou no alto do morro, em cima de uma pedra divinamente escondida atrás de arbustos e árvores (
seu cantinho preferido no mundo). Dali tinha uma visão perfeita da parte mais bela da propriedade.

Seu coração deu um salto quando viu o primeiro (e único) amor de sua vida adentrar na capela improvisada, todo orgulhoso e elegante (como nunca havia visto antes). Ao se posicionar no altar, ele sorria e apertava as próprias mãos com seu jeito peculiar. Reconhecia aquele raríssimo gesto de longe. Ele estava ligeiramente nervoso... e feliz!

Ficou hipnotizada com a beleza simples da noiva e acompanhou cada passo, como se fossem seus próprios. Mas foi quando ele seguiu ao encontro dela com os olhos marejados e se ajoelhou para beijar-lhe a barriga já saliente, que alguma coisa quebrou dentro de seu coração. Chegou mesmo a sentir a fúria dos caquinhos dilacerando seu âmago. 

Estava assistindo o casamento dos seus sonhos, só que outra atriz corria para os braços de sua alma gêmea, carregando no ventre uma semente que sempre ansiou fazer germinar em seu próprio útero. Lágrimas grossas rolavam pelo seu rosto, enquanto assistia petrificada outra mulher caminhando de mãos dadas com seu passado, ostentando um futuro que ela jamais teria oportunidade de experimentar, e exibindo na face a conquista que ela própria perseguiu em vão por estéreis longos doze anos. A pouca racionalidade que lhe mantinha sã tentava assumir o controle a todo custo, e carregá-la para o mais longe possível daquela cena perfeita. Queria fazê-la enxergar que ela não era a personagem principal daquela história. Era apenas uma figurante que entrou sorrateira nos bastidores, mas ficou e ficará para sempre, fora daquele palco, longe dos aplausos.

Não sabe quanto tempo ficou sentada naquela pedra, nem como chegou em casa. Tomou um longo banho, vestiu o pijama que outrora foi dele e foi para a cama. Sua mente tentava se encontrar no meio do turbilhão emocional que a sacudia. Teria que reaprender a viver, construir novos sonhos,
rever posturas, abrir seu coração para outras paisagens, intensificar a terapia, fazer um curso de dança (aquele mesmo que ela vivia adiando). Sim, sabia que teria que começar do zero novamente, despida de expectativas e falsas esperanças.

Mas, essa página em branco seria aberta somente no dia seguinte. Naquela noite em particular, ela iria visitar o passado, resgatar memórias, juras, sinais da existência do homem que um dia a tornou mulher... Abriria o livro de suas emoções sem medo e viajaria pelas fotografias mentais que emolduraram e coloriram as paredes de sua alma por tantos anos.

Porque alguns amores,
só sobrevivem nas lembranças...


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