Hoje acordei com um cheirinho de lambe-dedo invadindo minha alma. Corri até a cozinha, e o silêncio me trouxe de volta à realidade: a festa de aniversário era no céu!
A premissa de que o tempo tudo cura, não se aplica a certas saudades. Algumas pessoas marcam nossa vida de tal forma, que sua presença permanece forte, a despeito da ausência física. São tão especiais e singulares, que quando as asas da morte as levam para o encontro de Deus, em seu lugar, ao invés do vazio, permanecem, intactas, as lembranças...
Minhas melhores memórias, assim como as de meus irmãos, não coexistem com televisão, computadores, celulares ou video-games. Muito pelo contrário. Elas emanam de uma casinha simples, rodeada por um quintal grande e cheio de promessas. Na casa da minha avó Minda não existia regras. Era o nosso mundinho de fantasia particular, onde nossa criatividade era posta a prova e tudo se revelava possível. Ali, naquele ninho de carinho, podíamos ser crianças sem nos preocupar com qualquer tipo de protocolo.
Lembro como se fosse hoje. Minha avó, sempre cheia de trabalho e afazeres, acordando de madrugada para ajudar meu avô com os cortes de alfaiataria. Isso nunca a impediu de saborear nossa torta de barro; de fazer canudos de mamão para enchermos o quintal com bolhas de sabão; de montar carrinhos de latinha para puxarmos; de desvendar conosco os mistérios do quintal que ora virava caverna de pirata, ora casinha de boneca; de nos levar na quitanda da dona "Mouse", para escolhermos a guloseima da vez; de fingir susto quando pisava nos traques que espalhávamos pela casa (e que quase nunca estouravam de verdade); de colher amora e pitanga direto do pé para nossa sobremesa.
Sempre que saíamos com meu avô para passear, colhíamos faceiros qualquer pedaço de mato que nos chamasse a atenção. E na nossa imaginação infantil, chamávamos aquelas folhas murchas de buquê. Eles sempre foram acomodados nos melhores vasos e colocados em evidência na mesinha da sala. Enquanto todos viam ramos de mato, minha avó enxergava "flores silvestres". Porque, afinal, cada um percebe a vida e suas nuances conforme sua essência...
Minha avó era do tipo que beijava a ferida para sarar mais rápido. Que guardava qualquer rabisco que fazíamos num papel em uma caixa de preciosidades. Que dormia de mão dada quando tínhamos medo do escuro. Que rezava com a gente a oração do anjinho da guarda. Que tinha o dom de enxergar o melhor das pessoas (em qualquer ocasião). Que dava café com leite e pão para o cachorro. Que anotava num caderninho a data de aniversário de cada um que entrava em sua vida (e de morte também). Que orava diariamente por todos aqueles que amava (e sempre esquecia de pedir misericórdia para as suas próprias mazelas). Que transformava um salário mínimo num milhão de presentinhos. Com ela aprendemos que mimo em excesso não enfraquece o caráter. Muito pelo contrário! Agrados desta estirpe fortificam sentimentos, fortalecem a auto-estima... nos aquecem o âmago quando o vento frio da vida nos açoita a coragem. São sementes de amor que quando lançadas na mais tenra idade, crescem junto com a gente. Criam raízes. E continuam a frutificar, nutrindo gerações com benquerer...
Como toda avó que se preze, transformava a cozinha em extensão de seus afagos. Assim era com o bolinho de batata feito na medida certa para nosso paladar. Os deliciosos lambe-dedos com pitadas extras de carinho, saboreados no café da tarde. Os suspirinhos (com raspas de limão) carregados de afeto, presenteados em cada páscoa, em cada natal, em cada evento importante de nossa vida. Os canudinhos crocantes, recheados de maionese e porções generosas de ternura. Os sanduíches de sardinha com ovo sempre servidos nos aniversários. Nunca nos preocupamos em anotar as receitas dessas guloseimas. Logo a nossa família, que concentra na cozinha o coração da casa. Na verdade, acho que sempre acreditamos na ilusão de que nossa avó viveria eternamente, emoldurando nossa existência com seus cabelos imaculadamente brancos e seu sorriso fácil...
Toalhas de crochê eram uma carícia a parte. Tecidas ponto a ponto, engomadas com dedicação, decoram até hoje a mesa de nossas emoções. Falta de dinheiro ou saúde nunca impediu minha avó de presentear seus pupilos. Para isso, contava com sua imaginação e extrema sensibilidade. Meu avô sempre tomava sua cachacinha com limão para fazer a digestão após o almoço, em pequenos copinhos bojudos de vidro. Minha avó embrulhou copinho por copinho, os acomodou dentro de uma caixinha de lata e me presenteou em determinada ocasião. São simples copos de vidro, surrados pelo tempo, mas cuidados e manejados por um amor tão incondicional, que os transformou em cristais. Pelo menos, é assim que os vejo até hoje...
Parabéns vozinha! Sinta-se abraçada. Aquele abraço forte e apertado que só almas afins são capazes de sentir. Celebramos hoje em pensamento o seu aniversário. Porque independentemente de crença, continuas vivendo feliz em nossas melhores e mais ternas recordações. E lá assopras saudável mais uma vela de existência. Juntos saboreamos suspiros com pitadas de amor de avó, batidos no ponto certo do amor: em excesso, misturado com uma doçura que não faz mal a saúde, mas, pelo contrário, fortalece a personalidade e conforta o espírito.
Sua neta,
Sheila
PS1: Vó, viu como a Luana está linda? Como a gravidez realça o brilho dos olhos dela e do mano? O nascimento do Leonardo está se aproximando. Até lá, mima muito esse moleque aí no céu vó. Ensina ele a fazer bolhinhas de sabão. Enche ele de suspirinhos, com doses cavalares de doçura e afeto. Faz brotar nele a delícia de ser criança... como só a vó consegue fazer!
PS2: Cada vez que eu falo um palavrão imagino a vó dando pulinhos no céu. Bom, pensando pelo lado positivo, a vó deve estar super em forma né? Não tenho culpa, foi a ETT que me estragou...
PS3: Vó, hoje, com mais idade, descobrimos que não é o apito do trem que anuncia chuva. O problema é Joinville mesmo, todo e qualquer barulho faz chover na nossa amada terra...
PS4: Quanto as receitas do lambe-dedo, canudinho e suspirinho... seria demais pedir para a vó mandar psicografar? Tenho uma idéia melhor. Da próxima vez que as primas da família Andrade se reunirem, aparece para dar um alô, e aproveita para passar as receitinhas. Acho que não tem perigo delas se assustarem né, afinal, já são umas marmanjas (mas, só para nossa diversão, faz um "buuuuuuu" caprichado).