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Vírus do amor...
Posted by Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ Sheila Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ
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11.8.09
Coldplay - Fix You
Era uma noite quente de verão, e ela virava de um lado para o outro na cama, incomodada com o próprio suor. Até que desistiu de lutar contra a insônia e levantou. Foi para a sala, abriu a porta de vidro, e sentiu o frio do piso do chão da sacada subir lentamente por suas pernas, causando um frisson imediato.
Fechou os olhos e deixou que a brisa acariciasse seu rosto e brincasse com seus longos cabelos cor de mel. No silêncio da noite ouviu os murmúrios da própria mente. No fundo sabia que não era o calor ou a estação do ano que a incomodava.
Encostou-se no parapeito e deixou-se levar pelas lembranças. Eram tantas, e algumas tão suas a ponto de jamais terem cruzado para fora de seus lábios. Existiam somente no seu íntimo, naquele baú onde guardamos o impronunciável.
Era uma mulher atraente, orgulhosa de seus quarenta e "alguns" anos. Passara por todos os estágios consagrados pela sociedade tradicionalista. Entrou solteiríssima para a faculdade de medicina, namorou, ficou, transou, não necessariamente nesta ordem ou com a mesma pessoa. Até que se rendeu a um belo moreno de olhos verdes e coração generoso (até demais, descobriria mais tarde). Casou com toda a pompa e circunstância, e vivenciou tudo que podia, desde a lua de mel dos sonhos, até descobrir-se traída em todos os sentidos. Junto com as roupas dele, jogou fora por bom tempo a autoestima. Excursionou por advogados, juízes, e entrou na audiência de cabeça erguida e "separada de fato". Depois de encerrar anos de sua vida com a homologação de um total estranho, saiu aos tropeços, mas, enfim... separada judicialmente. Anos mais tarde evoluiu para divorciada.
Poucos sabem o quanto sofreu em todos os estágios, e o quanto de si perdeu no caminho. Para ocupar o tempo, transformou seus dias em maratonas infindáveis de cirurgias complicadas, atendimentos particulares na sua clínica, consultas gratuitas em comunidades carentes, e, ainda, plantões esporádicos em hospitais públicos. Cardiologia era a sua área e sua maior paixão desde o divórcio, e quando segurava o coração de outra pessoa em sua mão, sentia-se viva. Talvez, porque o seu próprio peito há muito estava oco, silente, vazio, fulminado pela desilusão.
Estava tão ocupada em cuidar do coração dos outros, que deixou o seu desprotegido. Por isso não percebeu quando "ele" se aproximou, e o soar dos alarmes foi muito tardio. Ela tinha aprendido com o passar dos anos a aperfeiçoar sua blindagem emocional. Mas, ela se conhecia o suficiente para saber que quando o amor achava um jeitinho de burlar suas defesas entrava como um spam, infectando inicialmente seus lábios, e se autoenviando para todos os órgãos de seu corpo, até que enfim, se alojava definitivamente em seu coração. E, Deus sabe que ela lutaria com todas as armas para evitar esse desenlace, sacrificando alguns membros se necessário fosse. Mas, se o inevitável acontecesse, inútil seria resistir. Porque quando o amor se instalava no seu coração, se espalhava tal qual erva daninha, tomando conta de tudo e fincando suas raízes para nunca mais sair. Qualquer tentativa de removê-lo destruiria tudo a sua volta. E era isso que mais a apavorava.
Por isso, desde o momento em que seus lábios (infectados pelo vírus do amor) disseram sim ao convite dele para um jantar a dois no dia seguinte, sua mente passou por todos os estados civis que usualmente aparecem naqueles formulários para aprovação de crédito, revivendo cada fase de sua vida com intensidade. Até que finalmente marcou... solteira! E não porque desdenhava do resto. Apenas porque lembrava uma época em que ela jamais tremeria por causa de uma mísera erva daninha.
Satisfeita com a escolha, voltou para a cama. E o sono finalmente a envolveu com seu abraço sedutor, enchendo seus olhos com a visão da alcova, clamando por concretizar seus sonhos (ou pesadelos)... E ela entregou-se àquele momento, sentindo um calor delicioso invadir seu peito. E dormiu, profundamente, embalada pelo ritmo cadenciado das batidas de seu próprio coração...