
Hoje pela manhã, enquanto comia mecanicamente uma bolacha de chocolate mergulhada no café preto, fui atingida por um momento de nostalgia. Minha memória foi ativada pelo cheirinho do café ou, talvez, pelo tilintar da bolacha na minha boca. De repente, uma série de lembranças adoçaram o meu desjejum.
Meus pais sempre cuidaram da alimentação de seus rebentos com afinco. Nossa mesa tinha o controle de qualidade afiado de minha mãe. Em sua maioria, os quitutes, massas, sucos naturais, geléias, sobremesas, sanduíches, eram feitos pelas mãos maternas. Não escapamos do terrível bife de fígado para manter a anemia longe. Muito menos do fortificante “Emulsão de Scott” com seu indescritível sabor de óleo de fígado de bacalhau. E como esquecer do “leite de magnésia”? Não tenho a menor idéia de sua real finalidade. Mas nunca esqueci seu gosto horrível.
Ignorando toda esta dinâmica, existia o tão esperado final de semana. Naqueles dois dias inteiros algumas regras eram quebradas. Com o devido comedimento, é claro. E hoje, analisando meu passado como um todo, percebo que esses pequenos detalhes do cotidiano se sobressaem, como feixes de luzes coloridas, que dão uma nuance toda especial a minha infância.
Sábado pela manhã era o dia em que comíamos bolacha São Luiz ou "filhós" de chocolate. Aliás, vou me permitir abrir parênteses. Só depois de adultos eu e meus irmãos descobrimos que o nome “científico” do "filhós" era "wafer". Não lembro quem foi que nos ensinou essa pérola. Provavelmente, uma de nossas avós, que, por sinal, são uma história a parte. Mas, até hoje esse fato rende gostosas gargalhadas. Perdemos a conta das vezes em que declaramos, em uma roda de amigos, nossa adoração pelo “filhós”. Cada qual tem sua própria história de vexame particular, caras espantadas, pegações no pé. Mas, hoje lembro com carinho dessa particularidade. É uma piada seleta, com código próprio, e que pertence exclusivamente ao nosso universo familiar.
Era um pacote apenas, dividido religiosamente entre nós três. Lembro como se fosse hoje. Meu irmão abria a bolacha recheada São Luiz, e, primeiro, comia o recheio. Depois, a parte de cima, e, por fim a parte de baixo. Já o "filhós", nós três adorávamos abrir fileira por fileira, apreciando o recheio de chocolate, e depois sentindo o crocante da casquinha estalar na boca. Qualquer artifício que prolongasse aqueles momentos de prazer era usado com sabedoria.
Depois deste manjar dos deuses, era a hora de acompanhar nossos pais ao centro da cidade, onde eles faziam compras, pagavam contas, enfim cuidavam dessa parte burocrática da vida adulta, que pouco nos interessava na época. E nós acompanhávamos, ora de cara amarrada, ora resmungando, ora nos divertindo com as vitrines coloridas e seus apelos. Entretanto, a promessa do meio-dia sempre tinha o condão de nos manter na linha. Claro, antes de fazer um lanche, passávamos na inesquecível banca "Casa das Revistas", onde ficávamos fascinados com a quantidade de revistas e livros cheirando a novidade. E, óbvio, cada qual sairia de posse de seu gibi favorito (o meu era o Pato Donald). Dependendo dos compromissos de meus pais, íamos à galeria Marcos Grossenbacher, que entremeia duas grandes avenidas do centro de Joinville. E lá no meio do labirinto de corredores, entrávamos num boteco familiar, e comíamos uma deliciosa coxinha de galinha caseira, com um copo de mate ou, melhor ainda, caldo de cana. Agora, se a pedida fosse um “x-salada”, daí, por certo, a festa estava feita. Éramos só sorrisos na face – e maionese –.
Quando chegávamos em casa, recebíamos nossa cota-parte de uma barra de chocolate Garoto, ou, talvez, uma caixa de Bis devidamente dividida (preciso dizer que comíamos da mesma forma que o “filhós”?). E saboreávamos cada partícula daquela guloseima, lendo nossa mais recente história em quadrinho.
Depois de toda essa aventura, dormíamos ansiosos, aguardando o domingo, quando então acompanhávamos nosso pai até a "Churrascaria Familiar", onde aguardávamos pacientemente que os atendentes enchessem a marmita de alumínio, e principalmente, a enorme travessa de porcelana que já trouxéramos de casa. O caminho de volta para casa, com o carro recendendo aquele aroma inconfundível do churrasco da Familiar, era uma tortura a qual adorávamos nos submeter. Sentar a mesa e desfrutar do churrasco, molho e maionese (o resto não importava) acompanhado de um litro de coca-cola (outro luxo do fim de semana), era um ritual delicioso. Meus irmãos insistem em dizer que eu, aproveitando o fato de ser mais velha, forte e maior, sempre roubava a melhor parte da carne: o mignon. Eu prefiro acreditar que apenas estava no lugar certo, no momento exato – e com a faca correta nas mãos –.
No final da tarde, saíamos todos de carro, com o rádio ligado, passeando pela cidade, e conhecendo os caminhos, becos e atalhos que só meu pai conhece. E, como sempre, quando estávamos chegando perto da rua de nossa casa, choramingávamos para que nosso pai passasse reto e passeasse mais um pouquinho. Ele sempre passava.
Hoje vejo crianças pequenas se empanturrando de McDonald's e litros de refrigerante, de segunda a domingo, comendo chocolate hora sim, hora não, como se fosse água, tamanha a naturalidade, sem sequer ter noção do que é degustar alguma coisa. Atualmente, os pequenos ganham bonecas falantes e carros eletrônicos na Páscoa, afinal, chocolate perdeu a graça, pois está disponível o ano inteiro. É uma pena. A pressa da vida moderna, acabou por assassinar certos rituais, que são imprescindíveis para um desenvolvimento emocional saudável. São o divisor de águas entre a existência fruída detalhe a detalhe e àquela vivência engolida sem mastigação. A vida, por certo, está perdendo aos poucos seu inigualável e elaborado sabor, e virando fast food.
Claro que na época eu não enxergava isso. O que eu mais desejava era comer dois pacotes de bolacha São Luiz sozinha. E, todo dia! Por certo destilei minha birra juvenil por todos os poros. Mas, hoje, de posse de todas as facilidades que a modernidade coloca aos meus pés, reconheço que foram justamente esses limites impostos pelos meus pais, que fizeram toda a diferença, a ponto de transformar um simples "filhós" numa crônica recheada de lembranças, emoções e aromas. Que eu faço questão de saborear fileira por fileira, deixando o chocolate... para o FIM!